CURADORIA POR NAARA FONTINELE*
É com as angústias provocadas pelo momento político violento, desumano, com o qual estamos lidando, que entramos nos filmes. Apesar de por vezes recorrermos ao cinema para “fugir” do mundo ao redor, ou para percebê-lo através de outro olhar, tenho a impressão de que algo dessas angústias sempre incidem sobre a experiência de descoberta de um filme – ressignificando suas imagens, reatualizando seus discursos, ajudando-nos a interrogar o passado com os olhos do presente.
Esta mini-programação é, como o mini-curso “Historicizar a estética”, mais um convite a revisitar alguns momentos fortes do documentário brasileiro de cunho crítico inventado no contexto da mais recente ditadura militar brasileira (1964-1985). Os filmes aqui reunidos foram realizados entre a institucionalização do poder autoritário (1964-1968) e o período mais repressivo da ditadura militar (1968 -1974). Alguns filmes nos impelem a transpor o antes e o agora. E, considerando a ideologia neofascista que ora precisamos confrontar, sugerimos também tentar ver (ou rever) os filmes mirando um movimento em direção ao futuro.
Roda & outras estórias de Sergio Muniz (1965) e A entrevista de Helena Solberg (1966) são filmes que nos convidam, hoje, a imaginá-los como um “aviso de incêndio”, um anúncio, um alerta para a sociedade brasileira da época. Embora sejam movidos por outras preocupações sociais, ambos os filmes evocam, por meio do trabalho de montagem, o início do autoritarismo de Estado, explorando alguns indícios visuais que iriam, nos anos seguintes, compor o inventário icônico da “política em uniforme” (termo da historiadora Maud Chirio) dos anos de ditadura militar e de colapso da democracia.
Já o ensaio fílmico Lavra Dor, de Ana Carolina e Paulo Rufino (1968), se volta para um conflito violento que antecede o regime instaurado com o golpe militar em 01 de abril de 1964. Como o título indica, o filme se interessa pela vida dos trabalhadores do campo, esforçando-se em figurar algo do passado recente dos movimentos populares em luta pela reforma agrária que foram reprimidos pelos poderes locais e pelas forças armadas. Por evocar um “incêndio” passado, que a história oficial poderia tentar esquecer, Lavra Dor pode ser percebido, hoje, como mais uma contribuição fílmica para a elaboração da memória das Ligas camponesas e dos trabalhadores do campo em luta.
Roda & outras estórias talvez seja o primeiro documentário experimental brasileiro que lança mão do reemprego de imagens pré-existentes e que implode a lógica de continuidade da retórica documentária clássica, inaugurando assim, em nosso cinema, a prática fílmica baseada em materiais variados de natureza diversa e heterogênea. Enquanto A entrevista está entre os pioneiros do “cinema verdade” brasileiro, se tomarmos essa noção ao pé da letra, como havia defendido Jean Rouch na época: um documentário fundado na conversa e na intimidade da vida das personagens. Lavra Dor, por sua vez, pontua com seus procedimentos expressivos articulando imagens e sons, e com seu ímpeto autoreflexivo, algo do filme-ensaio que já havia despontado em outras cinematografias nacionais.
*Naara Fontinele ministrou o workshop Historicizar a Estética no Colóquio Cinema, Estética e Política. A programação desta curadoria expande os horizontes dos filmes trabalhados no workshop e traz uma reflexão que toca os desafios e questões abordadas ao longo dos encontros. O conjunto da programação é dividido em três partes que estarão publicadas aqui neste blog ao longo dos próximo dias.
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