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Historicizar a estética - parte 2

CURADORIA POR NAARA FONTINELE

O cinema 

se oculta 

se expande 

no coração da 

desordem.

Com este curto poema, o cineasta e diretor de fotografia Aloysio Raulino expressa algo da experiência de parte do cinema brasileiro durante os “anos de chumbo” da mais recente ditadura militar. Em meados de 1968 e nos primeiros anos da década de 70, sobretudo no pós AI-5, quando o aparato repressivo se fortalece e a censura se profissionaliza, o cinema brasileiro que busca se opor ao regime autoritário se oculta sem desaparecer. Jovens cineastas, homens e mulheres, exploraram outras maneiras de fazer cinema, das quais surgiram experiências formais contestatórias variadas e singulares. Esta mini-programação reúne duas delas: Contestação, de João Silvério Trevisan (1969, restaurado e exibido no Brasil em 2013), e Lacrimosa, de Aloysio Raulino e Luna Alkalay (1970) – dois curtas em que, por meio da invenção formal, o cinema “se expande no coração da desordem”.

Contestação é um filme de montagem, clandestino, majoritariamente composto por imagens televisivas de situações de disputa entre a polícia e manifestantes, em conflitos sociais diversos, mundo afora. São os recortes de jornais brasileiros que pontuam, no filme, o autoritarismo brasileiro em meio aos demais. “Um filme de observação crítica da luta”, para retomar as palavras de Trevisan, a elaboração de Contestação nos leva a perceber tanto a violência do mundo quanto a carga de violência das imagens manipuladas pelos meios midiáticos.

Contestação (1969) de João Silvério Trevisan

Diferente de Contestação, que provém de um trabalho minucioso de montagem, às escondidas, com imagens pré-existentes, Lacrimosa é um filme do cinema a céu aberto, cuja força argumentativa se encontra tanto no gesto de filmar quanto de montar. Trata-se do deslocamento de um jovem cineasta-filmador ao encontro de moradores de uma favela às margens da então recém-inaugurada Marginal Tietê, em tempos de “milagre econômico”. Uma conjugação rara entre “cinema direto” e “cinema estrutural”, atravessada pela energia do cinema latino-americano da época, Lacrimosa demonstra em imagens e sons que o desejo de fazer imagens do outro em sua alteridade deveria depender necessariamente da participação dos dois sujeitos implicados na criação de uma imagem (aquele que filma e aquele que é filmado).

Lacrimosa (1970) de Aloysio Raulino e Luna Alkalay

Esses filmes abrigam uma experiência crítica, formal e perceptiva dos anos em que a violência brasileira – a desigualdade e injustiça social que escreve a história da nossa sociedade – foi revigorada pelo autoritarismo e conservadorismo. Nas variações experimentais de montagem de Contestação e de Lacrimosa, o cinema não é mais um simples olhar sobre o mundo, mas uma maneira de interrogar o olhar e de expandi-lo. É no convite que fazem ao espectador para expandir sua visão do/de mundo que esses dois curtas, absolutamente distintos em suas respectivas radicalidades, se encontram.

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